Crônicas Cronificadas - A morte como um meio de vida

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Ilustração por Raquel Esagui

                            A morte como um meio de vida 

"Além, muito além do medo da morte, está a imaginação humana.  É quase insuperável nas suas alternativas de caminhos que encontra para fazer do momento da perda do corpo físico um negócio lucrativo. O ser humano é realmente criativo.
 Uma pessoa conhecida, dona de uma funerária, passava o dia sentada em seu escritório atendendo as solicitações de caixões, e quem sabe, um espaço no campo santo para o enterro do falecido.
 Na mesa, uma estátua de São Jesuíno. Não aquele político, mas o verdadeiro, que de vez em quando fez algum milagre.
 - Amigo, boa tarde. O meu pai faleceu e eu...
 - ... está precisando de um caixão.
 - Isso!
 - Bom, temos vários...
 - Eu quero o melhor...
 - Que bom, nós temos o que vai dar mais conforto ao defunto, quero dizer, o Sr. Falecido seu pai. Comecemos pelo nosso modelo "Conforto no céu", é realmente a última palavra em conforto. O espaço interno dará ao falecido mais sensação de estar em sua própria casa...
 - Própria casa? Mas ele está morto!
 - Sim, amigo. Morto pra você que está sofrendo muito neste momento, mas muito vivo no coração de todos que o amam. Além do mais, não é por que seu pai faleceu que está morto, ele apenas não está visível, porém no mundo do além ele está firme e forte com todos os parentes e aderentes que já se foram.
- Está dizendo que o meu pai está vivo?
- Sim, seu... qual é o seu nome mesmo?
- Jenásio.
- Jenásio?
- Sim, Jenásio.
- Sr. Jenásio, a única coisa em que eu acredito é que nada se perde e tudo se transforma, então o seu amado pai com toda certeza deste universo está neste momento desfrutando da paz celestial. Por isso fiquei impressionado quando disse que queria o melhor caixão, pensei comigo ‘esse homem ama o pai dele e está demonstrando esse amor de forma coerente’. Então esse caixão "Conforto no Céu" é com toda certeza o top dos caixões, sendo superado apenas pela tumba de Tutankamon, aquele faraó super conhecido.
- Está dizendo que o caixão do meu pai é quase tão bom quanto o sarcófago de Tutankamon, o faraó?
- Melhor, muito melhor, o sarcófago não tinha algumas coisas que a nossa atual tecnologia permite, por exemplo, som ambiente...
- Som ambiente? Pra quê o morto vai querer som ambiente?
- Caro senhor Jenásio, vamos pensar na morte como pensamos na vida. O senhor acredita mesmo que o morto, quer dizer, o falecido, não estará escutando nada?
- Mas isso já é uma questão filosófica.
 - Ah! Chegou onde eu queria, é isso aí. Quando não sabemos algo, não devemos achar que não é verdade. Imagine que o senhor, um dia desses, como todos nós, vai para o outro lado, encontra o falecido e ele lhe diz:
"Eu fiz tudo o que podia por você quando em vida e fui recompensado com a sua ingratidão, por que não me colocou em um caixão com som ambiente, achava que eu não merecia?" – e eu já estou vendo o senhor todo confuso…
 "Na.. Na...Não, pa... pa... pai, e.. eu acho que o senhor merece tudo do melhor. Eu errei, claro que deveria ter colocado som ambiente..." - 

Que coisa mais terrível, estar em uma condição que não dá nem para consertar.
 Bom, temos também o "Saudades da vida", é um pouco mais em conta, porém vai dar para o mor.. quer dizer, para o seu querido pai, um conforto inacreditável.
 - Inacreditável, como assim inacreditável?
- Apesar de ser mais em conta, um pouquinho mais em conta, tem, além de som ambiente, ar condicionado frio e quente.
- Eu não acredito no que estou ouvindo. Pra que um homem morto vai precisar de ar condicionado frio ou quente?
- Agora caímos de novo na “nossa” ignorância. Somos muito ignorantes mesmo. Pense, o seu pai era um bom ou mau homem? Já sei, vai dizer que era um bom homem, eu também diria do meu pai. Agora vejamos, se quando ele chegar lá em cima e a turma de lá na sua avaliação achar que ele cometeu um errinho aqui, outro ali, e que não vai dar para ficar no céu e nem no limbo, onde ele vai parar…? 
 É aí que eu queria chegar. Não é o meu desejo, mas é melhor ser prudente. Um arzinho condicionado pode salvar a pele, quero dizer, o espírito do seu pai. O que me diz…?
 
 Jenásio estava ficando confuso, quando de repente entra na funerária uma mulher e diz: 

- Bom dia, eu quero um caixão.
- A senhora aguarda só um instantinho que vou lhe mostrar os vários modelos, e...
- O senhor não entendeu, eu quero o caixão mais simples que tiver na loja.
- A senhora pode aguardar um pouquinho?
- Não, se o senhor não puder me atender eu vou a outra funerária.
Voltou-se para Jenásio e disse: 
- Aguarde um instante.
-O caixão mais em conta que nós temos é este aqui. Não é confortável, é pequeno e a madeira não é de boa qualidade.
- É esse mesmo, quanto é?
- A senhora não quer dar uma olhadinha em outros modelos mais bonitos? Afinal, no velório todos estarão olhando e pensando porque a senhora não deu ao falecido um enterro em um caixão, como diria… adequado.
- O senhor ouviu o que eu falei? Eu quero o mais barato, o mais simples. Conforto é pra vivo. Quanto lhe devo?
 Jenásio se aliviou, já havia entrado em culpa pela morte do pai, agora podia escolher o caixão que desejava, sem culpa.
- Eu também quero o mais barato!"

(Trecho de Crônicas Cronificadas - Moisés Esagui)

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3 comentários

  1. Rrsrs!! Muito boa!
    A necessidade de vender gera um monte de justificativas! Nossa indecisão pode gerar um monte de culpa.

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  2. A conclusão achei fraquinha, mas a conversa entre o dono da funerária e o Jenásio foi divertida. Queremos mais!

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